Ad immortalitatem

Há uma Fabiana que me habita que ainda não cresceu, é uma menina mimada e manhosa. Há uma Fabiana que me habita que entra na frente, tem voz forte, lidera. Ambas têm algo em comum: Eu.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O FIM DO RACIONALISMO

Já escrevi por aqui sobre a desvalorização, vulgarização da imagem da mulher na mídia. Como costumo ir a fundo aos temas que escolho para os artigos do blog, busquei mais sobre o assunto. Leio, diariamente, os blogs que recomendo no espaço "Eis uma boa leitura". Entre eles o http://nao2nao1.com.br/ escrito por Gustavo Gitti, que é Pedagogo, Filósofo e editor e o http://papodehomem.com.br/ de um grupo de homens inteligentes, espalhados pelo Brasil que escrevem – divinamente bem – sobre “ideias e o que mais a imaginação alcança”. Dia desses, seguindo um link de um artigo no blog http://papodehomem.com.br/, encontrei um documentário italiano, chamado “O corpo das mulheres”.

Assisti ao vídeo do documentário e, mais uma vez, senti vergonha de ser mulher. Já havia postado esse vídeo a algum tempo atrás. Hoje resolvi postar o texto do vídeo. Trata-se de um excelente trabalho de Lorella Zanardo e Marco Malfi Chindemi com duração de 25 minutos, sobre o uso do corpo da mulher na televisão. Assistir ao vídeo só reforçou, ainda mais, a minha opinião sobre o perigo que representa a falta de responsabilidade das emissoras de TV, em divulgar essas explosões de exibicionismo do corpo da mulher, em um espaço que deveria ser usada para promover um bem maior à todos que as assistem. Veja o vídeo. Perceba o quanto o ser humano está doente, graças à doença que ele mesmo criou.

Não seja um produto. Seja o que você é: ser humano.

“A alternativa à humilhação é a incompetência.”



http://www.ilcorpodelledonne.net/?page_id=209

Vale a pena nunca esquecer.

IL CORPO DELLE DONNE

Por Lorella Zanardo e Marco Malfi Chindemi

Eu trabalhei e estou exausta. Não imaginava tanto esforço, tanto tédio. Agora eu sei que as imagens, não são apenas imagens. São comunicação, memória, aprendizagem, educação. Certamente não imaginava que as imagens televisivas fossem um espelho tão claro de alguns comportamentos. Tentei ver dentro do espelho para ver quem somos e talvez, tentar alterar nós mesmos se não gostamos de nós.
Entendi também que, as vezes, servem muito mais para ocultar do que revelar.

Recordo quando Marco me dizia que a TV tem um poder incrível. Mesmo falando do real, representando o real, consegue dissimular. A TV hoje rouba, deturpa, sabota a paisagem da consciência de todos. Tira-nos as raízes e os fundamentos. Rostos convertidos em máscaras pela cirurgia estética. Corpos excessivamente, inflados como fenômenos de um eterno circo que nos remetem a uma ideia de mulher falsificada.
Então eu tenho a certeza de que pode assistir à televisão, pode aguentá-la, mas somente tendo em mente que é um grande circo.

Quem somos? O que vemos? Porque todas as mulheres da Itália não descem às ruas para protestar contra a forma como somos representadas?   

Os rostos e os corpos das mulheres reais foram escondidos, em seu lugar a proposição obsessiva, vulgar e manipulada de bocas, pernas, peitos, uma remoção e substituição com máscaras e outros materiais. O que aconteceu com a “qualidade” do feminino nas imagens que hoje dominam? Não conseguimos ver na televisão uma natureza peculiar do ser feminino, uma nova identidade, original, genuína, se não em uma oposição ao masculino, com exceção de poucos casos em redes de TV menores ou em horários de baixa audiência.

A presença da mulher na TV é uma presença de quantidade, raramente de qualidade. A mulher proposta parece satisfazer e alcovitar os supostos desejos masculinos em todos os aspectos, abdicando completamente, a possibilidade de ser o “Outro”. Reduzida e auto-reduzida a objeto sexual, envolvida em uma corrida contra o tempo que a força a monstruosas deformações. Constrangida em moldura muda ou elegida para um papel de condutora em transmissões inúteis onde nunca é necessária a competência.  

É como se a mulher fosse incapaz de olhar-se no espelho, não se aceitando, e ao seu rosto, assim como ela é. Ser verdadeiro certamente é um dos direitos fundamentais do homem. Mas ser verdadeiro exige saber reconhecer os nossos desejos e as nossas necessidades mais profundas. Do meu ponto de vista, acho que o problema real das mulheres seja não ser mais capaz de reconhecer as suas necessidades, portanto, como é possível ser verdadeiras?

Introjetamos o modelo masculino tão profundamente que não sabemos mais reconhecer o que queremos realmente e o que nos faz felizes, quero dizer nos olhamos umas às outras com olhos de homens, olhamos para os nossos seios, nossas bocas e nossas rugas, como pensamos que um homem nos olharia...


O atual modelo de beleza não nos representa e é, no mínimo bizarro que a publicidade use imagens com referenciais sexuais atraentes para homens para atrair o público feminino... Estou convencida que, sem esta pressão contínua sobre o “ter que ser bonita”, de acordo com os padrões que não escolhemos, nós aceitaríamos muito mais o que somos. E se é verdade que os corpos dizem sempre algo mais que a língua daqueles que gostariam de dominá-los, o que estão nos dizendo esses corpos?


No programa de TV Bagaglino, poucas semanas depois do humilhante “escândalo das vallete”, Elizabetta Gregroraci dava suporte ao seu papel humilhante ao escândalo, cantando A rumba do pirulito. Mas precisávamos da valleta sado-masoquista?  Havia necessidade de uma figura tão cheia de erotismo nada solar que, provavelmente, impede aos homens que voltam do trabalho de mudar de canal? Por que isso aconteceu? Talvez, uma hipótese seja porque é como funciona o sistema, estes são os nossos modelos de referência. É assim que funciona a partir da alta moda à política, do esporte à música pop até a medicina.

Passar a fazer parte disso te torna uma mulher forte, te dá poder. Estabelecemos que as mulheres emancipadas têm que se propor publicamente e declaradamente como um objeto de desejo, sempre e em qualquer situação mesmo quando somos demandadas por nosso profissionalismo, mesmo quando na tela há mais mulheres adultas, competentes que teriam talvez coisas pra dizer.

Mas desde que o único sinal de desejo que temos capacidade de reconhecer é uma explicita referência sexual convertemos toda a nossa cultura à estética de um strip club.  Para filmar essas imagens é necessário posicionar, antes da filmagem, a câmara de modo que possa, então, filmar seios, vaginas, pernas como em um filme pornô, se não fosse que estamos em uma televisão pública.

Cristina a última heroína do Big Brother Itália, é filha do feminismo, que reinterpreta na sua própria maneira: antes tinha tudo para ganhar. Hoje, utilizando também aquelas armas que uma feminista teria abominado, de origem a uma modelo de mulher nova que tem em si muitas contradições. Contém em si todos os símbolos de feminino que ela manipulou para torná-los mais receptivos ao mercado, porém a sua natureza não é de uma subjugada, porque hoje, para ter sucesso neste mundo, precisa de atributos masculinos. Cristina voltou a piar como a Milo, a Biagini. Contudo, fazia anos que as mulheres tinham recuperado um tom de voz adulto.

Curiosamente muitas das garotas de calendário não são nada além da feminilidade diligente, estudiosa, ambiciosa e determinada descrita pelas estatísticas da escola. Muitas vezes são as ex boas meninas, alegria das professoras.
Sara Tommasi “paperetta”, “schedina” participante da “Ilha dos famosos” declarou:

 “Após 4 anos  de estudo à Bocconi, eu era executiva de uma grande empresa. Hoje eu sou o produto, o produto que vendo no mercado do show bussines.”

Dos 45 músculos faciais, exceto os necessários para mastigar, beijar, cheirar, soprar, todos os outros são usadas para expressar emoções. Mais articulado e complexo será o caráter, compreendendo por caráter a nossa mais profunda essência, mais individual será a expressão do rosto.

O que estão escondendo esses rostos? Por que as mulheres não podem mais aparecer com o verdadeiro rosto na TV?   Por que já não há mais nenhuma mulher adulta que possa mostrar o seu rosto? Por que essa humilhação? Temos que ter vergonha de mostrar a nossa cara? Temos que esconder nossas rugas, a passagem do tempo que deixa suas marcas em nosso rosto é uma vergonha? Mais um abuso no qual nenhum homem é obrigado.

Dizia Anna Magnani ao maquiador que antes da gravação estava querendo cobrir-lhe as rugas do rosto:

“Deixa-me elas todas. Demorei uma vida para fazê-las.”  

Ocultando nosso rosto, estamos renunciando a nossa singularidade, portanto, a nossa alma?
O rosto expressa a nossa autenticidade. Primeiro tem a sua exposição direta, sem defesa, em que ele aprece em sua digna nudez. É mesmo o rosto que começa e permite todos os discursos, e é o pressupostos de todos os relacionamentos humanos.

Esses rostos possibilitam relações? O rosto do Outro, então, me envolve, me põe em questão, me torna imediatamente responsável. O rosto humano tem uma mensagem: vulnerabilidade absoluta. E é por isso que é disfarçado, escondido, decorado, modificado cirurgicamente? Isso explica por que razão é tão difícil aceitar o próprio o rosto: é como fixar no rosto a vulnerabilidade absoluta. É como permanecer vulneráveis? Como continuarmos a ser nos mesmas em um mundo, onde se é vencedor apenas se ferozmente invulnerável? Que escolha difícil para as mulheres!Invulneráveis entre os vencedores ou vulneráveis e esquecidas? Porém, a vulnerabilidade é o mais fascinante do rosto.

Pier Paolo Pasolini tinha entendido antecipadamente, que a televisão estava prestes a destruir a poesia, potencialmente, expressa pelo o rosto humano. Pasolini tinha um agudo senso da realidade do rosto humano, como lugar de encontros de energia inefáveis que explodem na expressão, isso é, em algo de assimétrico, individual, impuro, complexo, portanto, o contrário do típico. Cadê os rostos das mulheres? E o feminino expresso por cada rosto, na sua singularidade?

Envelhecendo eu revelo o meu caráter, onde por caráter devo compreender todo o vivido que moldou o meu rosto, que é chamado de “face” (rosto) porque eu mesmo a “faço”, com os hábitos contraídos na vida, as amizades de frequentei, a peculiaridade que me dei, as ambições que persegui, os amores que eu conheci e que eu sonhei com as crianças que procriei.

“Honra o rosto do velho” está escrito em Levítico (19-32). Porque é um dever de cada cidadão render público o seu próprio rosto e não escondê-lo como hoje permitem as cirurgias. Não é pequeno o dano que ocorre quando os rostos que envelhecem tem fraca visibilidade: quando expostos ao olhar público são somente rostos depilados, maquiados e transformados em fotogênicos para garantir um produto seja este comercial ou político.

Hoje, existem muitas mulheres que conquistaram poder e fama na TV, e muitas delas são mulheres maduras, com uma história. Qual é a verdade que nos propõem seus rostos? Qual modelo feminino pode propor às mulheres mais jovens com as quais parecem duelar de um ponto de vista estético? Nenhuma mulher que se proponha como uma alternativa à ditadura do corpo perfeito?

As poucas imagens de mulheres adultas não manipuladas são ferozes: hienas que se jogam desesperadamente contra as mulheres jovens, quando a comparação estética é desigual, zombaria, humilhação das mais jovens por parte das mulheres mais velhas. Mas se os rostos não mostram mais a sua vulnerabilidade, onde encontrar as razões da pietas, a necessidade de sinceridade, a procura de respostas sobre as quais se baseia a coesão social? E então, o lifting, nos lembra o filósofo Calimberti, façamo-lo não ao nosso rosto, mas às nossas ideias e descobriremos que muitas ideias foram criadas assistindo, na televisão, o espetáculo da beleza, da juventude, da sexualidade e da perfeição corporal, na realidade, servem para esconder a nos e aos outros a qualidade da nossa personalidade, na qual talvez não temos dado a mínima atenção ao longo de nossa vida, porque, desde que nascemos, nos ensinaram que aparecer é mais importante que ser com o resultado do risco de morrer desconhecido para nós e para os outros.

Na escola primária para separar um resumo de outro, a professora me dizia para desenhar as “grechine” elementos decorativos, moldura do meu trabalho. A TV está cheia de mulheres-moldura algumas propõem um leit motiv erótico, outras são simplesmente graciosas decorações, doces e jovens rostos que atuam como “siparietto”, ornamentos, “grechine”, como à origem do sutiã à vista e dos lábios enchidos, que mesmo a mais inteligente das convidadas a um debate, ao contrário dos colegas do sexo masculino, sente a necessidade de exibir tem a noção equívoca de que um ser humano que tenha atingido a suposta libertação dos estereótipos possa usá-los para se divertir.

Mas jogar com símbolos e com os estereótipos exige um entendimento tão poderoso e tão enraizado do mesmo jogo que é muito difícil não ficar queimado. Pode-se ser colocada sob uma mesa de vidro de plástico, pode-se assumir a função das pernas da mesa e passar muito tempo aí em baixo, de quatro, e manter a leveza de um jogo? Sem que isso provoque, em algum lugar escondido do nosso organismo, uma ferida? E o que sentimos, nós, deste lado do ecrã? Aí na TV há uma mulher que um homem está colocando no lugar das pernas de uma mesa. Na época alguém tentou protestar, mas os autores e o apresentador Mamuccari ficaram indignados porque “a moça é uma escultura vivente e na gaiola ela tem também, os furos para respirar.”

Um número infinito de mulheres humilhadas.

Muitas das mulheres adultas da TV italiana são poderosas como os homens, portanto, parecem sentir-se obrigadas a adotar o estilo rude exatamente como faria um prevaricador, mesmo que de forma diferente.
Durante anos acreditei que a TV não me preocupasse não interessasse a milhões de mulheres trabalhadoras, envolvidas que tem uma finalidade na vida. Mas essas imagens saem da TV e entram em nossas casas, alimentam as fantasias, ocupam os olhos dos nossos filhos, invadem o mundo. É um jogo a sobrevivência da nossa identidade.

Porque não reagimos?

Porque não nos apresentamos na nossa verdade?

Porque aceitamos essa humilhação contínua?

Porque não cuidamos dos nossos direitos?

Do que temos medo?

domingo, 21 de fevereiro de 2010

ÍNDIOS












Fotografias de Cláudia Andujar
Fotógrafa e membro fundadora da Comissão-Pró Yanomami,
coordenou a campanha pela demarcação da
Terra Indígena Yanomami entre 1978-1992.



Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.”

“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos.
Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.”

“Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.”

“E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza.”

Eu chorei lendo a carta de Pero Vaz de Caminha. Chorei por meu povo, minha gente.



“... e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.”



Como seria o Brasil se os povos indígenas, não abaixassem seus arcos?

Nunca saberemos.

Pousaram seus arcos e flechas por que só conheciam a paz. Porque eram inocentes e não conheciam outro modo de ser.

 “Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.”

Faz algum tempo que eu não vou ao centro de Florianópolis. Mas trabalhei lá durante quase cinco anos da minha vida, na esquina conhecida como o coração da cidade, onde tudo acontece: Rua Marechal Deodoro da Fonseca, esquina com Felipe Schmidt.

Eu trabalhava em uma empresa nacionalmente conhecida, do setor varejista de eletrodomésticos e eletrônicos, que ficava exatamente, em frente à Igreja São Francisco, conhecida Igreja dos pobres.  Datada de 1815, a bela obra pertence ao período Colonial. Recebeu o codinome de igreja dos pobres, porque abriga em suas portas, os menos afortunados.

Nas portas da São Chico havia sempre uma senhora cadeirante que pedia esmolas. Eu levava café da manhã pra ela. Quando ela fazia seus pedidos repetia a frase: “Dá uma esmolinha pra mamãe.” Nunca vou esquecer.  Também havia as adolescentes, geralmente, grávidas, as conhecidas “mães dos filhos da rua”, que catavam os papelões que o comércio dispensava, ao final do expediente, para a COMCAP recolher. Não esqueço um senhor de idade, baixinho, sempre com um chapéu de palha. Meus colegas de trabalho diziam que ele não precisava pedir esmolas, porque possuía casa própria e aposentadoria. Mas isso não interessa.

De toda essa gente que habitava as portas da São Chico, as índias eram as que mais me comoviam. Quando eu passava e via aquelas crianças de pés no chão, ou nos colos de suas mães, mamando em meio a poluição da rua, a baixo do calor do sol ou em dias de extremo frio, eu pensava: O que fizeram com elas? Pareciam alheias a todas aquelas idas e vindas. Passavam o dia a observar o “homem branco” e seus discursos: “É a coxinha barata! É aqui! Compro ouro, vendo ouro, pago bem no ouro. É só amanhã! É só amanhã nas Casas Bahia! Magazine Luiza, vem ser feliz.”

O que será que elas pensavam ao ver as madames desfilando na Deodoro com seus saltos; os doutores falando em seus celulares; os alunos do CEPU praticando bullyng; os Emos do Bob's; os Hippies da Praça XV; os Capoeristas; o PT com suas greves; os aposentados jogando xadrez; o frequente progresso dos arranha céus; o barulho interminável; adolescentes se drogando em plena luz do dia; sambistas do Mercado Público; idosos pedintes; prostitutas da Conselheiro Mafra; costumes e tribos do homem branco. O que elas pensavam?  

Pareciam viver em um mundo paralelo. Tentei uma aproximação algumas vezes. Nunca obtive sucesso. Elas não conversam, ficam em silêncio. Os índios sempre ficaram em silêncio diante do homem branco.
Algumas pessoas, clientes da empresa onde eu trabalhava, indagavam: “Por que essas índias não vão trabalhar?” Pura ignorância! O homem branco, violentamente, roubou seus costumes, sua identidade, sua liberdade, honra, história, dignidade, futuro. Os escravizou, roubou sua paz!

E eles?

Eles ficaram em silêncio e pousaram seus arcos e flechas.

Desejar que o índio viva como homem branco é covardia, ditadura. É repetir os erros de 1500. O homem branco não conseguiria viver nas matas, andar nu, comer caças, tomar banho nos rios, dormir em ocas. 

Não. 

Então por que pensar que o contrário é possível?  

As índias da Deodoro vendiam seus artesanatos em silêncio. Os colocavam em exposição sobre um pano e só. Jamais ouvi a voz de uma delas. Jamais! Mas diziam muito com seu silêncio.

O homem branco fala compulsivamente. Mal permite que o outro termine a frase e o interrompe. Pensa que não tem tempo para ouvi-lo. Então, não o ouve e não há diálogo. O homem branco não sabe comunicar-se. Possui dois ouvidos para ouvir e uma só boca para falar. Mas fala muito mais do que ouve. E fala demasiadamente, porque não tem nada a dizer.  Isso é ser irracional. Isso é desrespeito. Estupidez! O homem branco é graduado. Graduado! E o que aprendeu sobre o respeito ao próximo e o silêncio?

“Mulheres, homens e crianças corpos trêmulos, rostos angustiados, mãos erguidas implorando misericórdia.”

(Trecho do vídeo “Índios” do site O Peregrino.)

Os índios foram vítimas de genocídio, extermínio. E isso equivale a dizer que o verdadeiro povo deste país, está doente, é discriminado, teve sua cultura violentamente, aniquilada, pede esmola nas ruas, não tem onde plantar, caçar, dançar, praticar sua espiritualidade, viver, existir.

O verdadeiro povo deste país é o indígena.

É aquela índia sentada na Rua Deodoro, no Centro de Florianópolis-SC, com seus filhos nos braços, que você nunca olhou. São os índios das aldeias Yynn Moroti Wherá, no bairro São Miguel, em Biguaçú - SC e Guarani, no Morro dos Cavalos, situada no município de Palhoça - SC. São os índios da Reserva Laklãnõ (antiga Duque de Caxias) em José Boiteux, no Vale do Itajaí-SC, que estão sendo processados e correm o risco de cumprir até, 20 anos de prisão, por terem participado de um protesto no ano de 2006, na Rodovia Contorno Barragem, onde supostamente, teriam impedido a passagem de um caminhão, que carregava toras de árvores da Reserva. É o índio Pataxó, Galdino Jesus dos Santos que foi queimado vivo, enquanto dormia num abrigo de ônibus, em Brasília-DF. É a menina índia, Maria dos Santos Paulino Guajajara, morta em um tiroteio, no estado do Maranhão, quando dois homens armados invadiram a aldeia Anajá, onde ela morava.

Os colonizadores ainda existem! Escravizam, violentam, ignoram não só os índios com sua indiferença. Escravizam o “diferente” com a alienação. Os educam a pensar que consumir é ideal de vida e que imagem é tudo. Os educam a agregar valor exacerbado ao capital, ao dinheiro e a esquecerem de si próprios. Os colonizadores de hoje não são só, os europeus de 1500, são americanos, são as elites, os políticos brasileiros, a mídia, os omissos, relapsos, são qualquer um que age com indiferença diante do “diferente”.





"Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante. De uma estrela que virá numa velocidade estonteante e pousará no coração do hemisfério sul na América, num claro instante depois de exterminada a última nação indígena. E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida  mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias virá. Impávido que nem Mohamed Ali. Virá que eu vi! Apaixonadamente como Peri. Virá que eu vi! Tranquilo e infalível, como Bruce Lee. Virá que eu vi. Foxé do afoxé filhos de Gandhi. Um índio preservado em pleno corpo físico, em todo sólido, todo gás e todo líquido, em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. Do objeto sim resplandecente descerá o índio e as coisas que eu sei que ele dirá, fará, não sei dizer assim de modo explícito. E aquilo que nesse momento se revelará aos povos  surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto  quando terá sido o óbvio."

(Zé Ramalho - Um índio)


Segue a baixo, a carta de Pero Vaz de Caminha e o endereço do site Peregrino. 
O site é um exemplo a seguir.  






Silêncio! Não há mais nada a dizer.




MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

Senhor:


Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer.

Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:


A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.

Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.

Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra a Terra da Vera Cruz.

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos.

Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si.

E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos... 


...E eles os pousaram.

Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.

Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.

Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.

E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia.

Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram.

Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos.
Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.

Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metemnos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.

Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém.

Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso.
Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.

Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.

Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão
lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar.
E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.

Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças
– ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor.

E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.

Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria.

E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.

Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau
Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.

Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais. Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques.

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.

Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamonos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes.

E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.

À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu — ele com todos nós — em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.

Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três que aí tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.

Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.

Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.

Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.

Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.

E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem.
E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.

Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.

E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaramse logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados.

Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.
A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do
rio.

Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas. Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.

Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.

Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.

Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.

Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado. Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.

E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.

Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.

O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foise logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém. Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva.

Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser.
Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas.

Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho.


E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir. À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.

E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.

Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.

Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.

Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.

Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse.

E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus. À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.

O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!

Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha. Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio — o Capitão a Ela há de enviar.

À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.

Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que para escrever seja.

À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.

Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.

Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.

Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos.

Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber.

Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade. Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles. Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água. Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto,
tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar.
Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.

Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.

E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade.


E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.

Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.

Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.


Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.


Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.

Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.

E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção. Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se.

E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.

Isto acabado era já bem uma hora depois do meio-dia – viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.

E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. 


E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza.


E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.

Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.

Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer. Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.

Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria.
Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.


É. Isso é Brasil.




Instinto de Loba.

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