Ad immortalitatem

Há uma Fabiana que me habita que ainda não cresceu, é uma menina mimada e manhosa. Há uma Fabiana que me habita que entra na frente, tem voz forte, lidera. Ambas têm algo em comum: Eu.

domingo, 6 de março de 2011

Está postagem não tem coerência com a proposta do blog. Mas como ainda procuro a razão do meu canto, resolvi postá-la.


Eu estive ausente. Trágicos acontecimentos familiares invadiram minha paz, aos vinte e oito dias do mês do desgosto, no começo da noite. Eu estava sentada na cadeira de um salão de beleza, terminando de arrumar o cabelo para ir à formatura de uma amiga. Ainda vive clara na minha memória, a cena seguinte. Vejo-me entrando aos prantos, desesperada, porta adentro da recepção, da clínica SOS Cárdio, no Centro de Florianópolis. Eu vestia um longo, todo trabalhado em pedraria, em cima de um salto 15, com a maquiagem escorrendo pela face, por conta do choro inconsolável. Eu procurava por minha mãe e meus irmãos.

Meu sorriso se apagou naquele começo de noite e só voltou a minha face, 14 dias depois.

Era meu pai. Isso explica o desespero. Eu e ele temos uma ligação forte. Amo meus irmãos e minha mãe com todas as forças do meu coração. Mas meu pai me preocupa por sua inocência, me comove por sua força, determinação e humildade. É um herói. Meu pai é o homem da minha vida.

Dois rins falidos e dois aneurismas

Do alto de seus 71 anos de idade e experiência, durante um exame de rotina para verificar a saúde da próstata, papai descobriu que um de seus dois rins, estava com estenose. Estenose é um estreitamento anormal que compromete o funcionamento dos rins. No caso de papai, um rim sofria estenose em 95%. E o outro 90%. Isso equivale a dizer, que seus rins estavam quase que 100% comprometidos.

Como se já não bastasse, descobriu que possuía dois aneurismas. Um Aneurisma Fusiforme da Aorta Abdominal. E outro Aneurisma de Ilíaca Comum. Aneurisma, para entender fácil, é uma bomba relógio pronta pra explodir.

Quais são mesmo os possíveis problemas de próstata?

Em breve consulta a qualquer site de pesquisa, é possível saber da importância da aorta. Trata-se da maior e mais importante artéria do sistema circulatório do corpo humano. É nela que nascem todas as outras artérias do organismo. É como se ela fosse a avenida principal de uma rodovia e as demais artérias, pequenas ruas paralelas, que se originam nela e seguem outras direções, irrigando todo o corpo com sangue oxigenado. A aorta se inicia no coração e termina à altura da quarta vértebra lombar, onde se divide nas artérias ilíacas comuns. Levar sangue oxigenado para todas as partes do corpo é sua principal função.

O Aneurisma, a tal “bomba relógio” é a dilatação vascular de uma artéria. No caso de meu pai, na aorta e na artéria ilíaca comum. O perigo desta dilatação está no seu possível rompimento (explosão), ou ainda, em trombosar.

Trombosar significa formar um coágulo de sangue, um trombo no interior de um vaso sanguíneo que pode causar embolia. A embolia é a obstrução de uma veia pelo deslocamento de um trombo (coágulo) até o local da obstrução.

Imaginem o quanto pode ser perigoso um coágulo de sangue viajar pelas artérias e chegar ao coração, obstruindo a passagem de sangue? É morte certa.

Uma cirurgia de grande porte era a possível solução para reestabelecer a saúde de meu pai. E foi feita. No mesmo procedimento aconteceu a angioplastia da artéria renal, de um dos dois rins. A angioplastia da artéria renal é uma espécie de plástica nas artérias dos rins, para tentar recuperar sua perfeita circulação.

Também foram feitos dois implantes de endroprótese na aorta e na ilíaca comum. As próteses impedem o rompimento dos aneurismas.

Tudo estava, aparentemente, bem e programado, apesar do perigo eminente de um dos dois aneurismas romperem. A única má notícia era que um rim havia sofrido falência.

Os aneurismas não romperam.

Meu pai saiu da cirurgia consciente. Foi levado para UTI. Procedimento rotineiro para melhor observação do paciente. Tudo aconteceu durante a noite. No dia seguinte, eu fui vê-lo.
Estava aparentemente bem. Não precisava de respirador. Sentado na cama, não reclamava de quase nada. Apenas de sentir pouca ardência, queimação próximo ao local da cirurgia. Pouca. Conversamos sobre eu ir à formatura, ele concordou:
“O papai está bem, minha filha. Vai te divertir.”
Antes de sair, chamei o médico plantonista, perguntei sobre a ardência e ele me informou que iria verificar, mas que não era motivo de preocupação. Assim, eu segui para o salão de beleza. Aquela era a noite da formatura.

Estava tudo controlado.

Ou não.

A ilíaca comum é uma artéria responsável pela irrigação sanguínea dos membros inferiores e da pelve. É minúscula se comparada com a aorta. Depois de poucas horas da cirurgia, a ilíaca comum de meu pai rompeu-se e causou uma hemorragia interna, a princípio, silenciosa, porém progressiva. Aquela ardência e queimação que ele sentia era o início de um pesadelo.

Segundo a médica que o operou, após a desobstrução das artérias renais, através da angioplastia, a ilíaca não suportou o novo trânsito sanguíneo, antes quase obstruído.
Ela nos disse que meu pai estava muito agitado por conta da severidade da dor que ele sentia, em virtude do sangramento interno, já em estado avançado. Aquela ardência e queimação que ele sentia, durante o dia, era provocada pelo início da hemorragia. Depois de algum tempo, até que os médicos conseguissem descobrir a causa da ardência, o sangramento interno, já avançado, causava uma dor, humanamente, insuportável. 

Eu já havia chegado à clínica, quando a médica responsável pela cirurgia, veio até a recepção conversar com a minha família. Disse que precisávamos ser fortes. Muito fortes. Que meu pai precisava, mais do que nunca, do nosso apoio. Que ele estava consciente e muito agitado em virtude da dor que sentia.

Ela foi direta e sincera ao dizer:

" A dor que o pai de vocês está sentindo, neste momento, pode ser comparada com a dor que um ser humano sofre após ser vítima de um golpe de faca."

Nós nos olhamos rapidamente e em seguida se fez o silêncio. Ninguém disse mais nada, além dela. Ela completou dizendo que, como ele estava consciente, precisava de nós, seus filhos, perto dele.

Lembro que quando vi a médica caminhando de volta, pelo corredor, em direção a UTI, onde meu pai estava, eu juntei as minhas duas mãos em oração, sem ter vergonha da minha fé, olhei pra ela e pedi, mentalmente, a Deus, com muita força, que ele a iluminasse. Eu nunca emanei tanta energia positiva a alguém, como fiz para a médica de meu pai, naquele momento.

E há quem não tenha fé.

Quando eu ainda estava no salão de beleza e recebi o telefonema da minha irmã pedindo pra eu ir para o hospital, senti no tom de sua voz que ela já havia chorado. Só perguntei se ele estava vivo. A resposta foi um sim desanimado. Deixei o salão apressada, agradecendo a Deus que estava com meu parceiro, o Marcos, e não precisava guiar perturbada emocionalmente.

Cheguei à clínica a tempo de ouvir a médica e de acompanhar meus irmãos e a equipe, na remoção de meu pai para o Hospital de Caridade. Precisavam fazer um ultrassom, para saber onde era a origem da hemorragia. Somente o Hospital de Caridade dispõe do aparelho necessário para o exame.

A cena era angustiante.

Meu pai, um patriarca respeitado, homem forte, gemia de dor, mesmo sob o efeito de morfina. Vê-lo sobre a maca, sendo transportado, com tantas pessoas e movimentos a sua volta, era a certeza de uma noite longa e desesperadora. Naquele momento, mais uma vez, eu tive certeza da impotência do ser humano, diante do perigo eminente da morte.

Eu fui responsável por todos os procedimentos cirúrgicos pelos quais ele passou. Precisei acompanhá-lo. Naquela hora, vendo meu pai, naquela situação, me questionei sobre o peso da responsabilidade que estava a minha frente. Meu coração batia tão forte, que sentia pulsar na minha garganta.

Aquele foi um dos momentos mais importantes da minha vida.

O olhar de minha mãe era distante. Sentada na recepção, com o rosário nas mãos postas, demonstrava paciência, tristeza e fé. Sentimentos típicos de uma ex-enfermeira católica, dona de um preparo psicológico de dar inveja. Antes de ir para o hospital de Caridade, aproximei-me dela, beijei sua testa e disse que a amava e que tudo ficaria bem.

Ela permaneceu em silêncio.

Durante o trajeto até o hospital de Caridade meu irmão, que já foi Técnico de Enfermagem, acompanhou meu pai na ambulância. Eu, minha irmã, meu cunhado e meu companheiro Marcos seguíamos logo atrás. No Caridade eu fiquei bem perto  de meu pai o tempo todo. O desespero me arrebentava por dentro, minhas mãos estavam geladas. Eu tremia inteira. Era visível. 

Meu pai tinha um hematoma elevado, inchado, alto que começava pouco a cima da virilha e se estendia até meia cocha. Era o grande coágulo, da visível hemorragia. Assustador.

No ombro direito, papai recebia transfusão de sangue, a fim de repor os 700 ml que perdeu. Pelo resto do corpo fios, agulhas, soros, aparelhos. Nunca esquecerei o som da máquina , que monitorava os batimentos cardíacos dele. Um bip repetitivo. A certeza de que seu coração estava funcionando. A imprevisão sobre a continuidade daquele som, me atormentava. 

Estavam na sala de exame, além de mim e de meus irmãos, três médicos, dois enfermeiros e toda a equipe da ambulância que o transportou. A quantidade de pessoas denunciava a gravidade da situação.
Eu tentava acalmá-lo. Sem sucesso. Teve um momento que ele olhou em meus olhos e disse:

“Minha filha, essa cirurgia vai me matar.”

Eu engoli aquilo seco. Tinha que ser assim. Eu precisava passar tranquilidade a ele. Foi quando respondi, sem desviar o olhar, com voz forte e apertando a mão dele:

“Eu estou aqui, meu pai. Vai dar tudo certo. Não duvida da sua fé”.

Fui chamada a recepção para assinar a autorização do exame. Pela segunda vez na minha vida, eu não conseguia escrever. A minha mão tinha vontade própria, tremia sem parar. O recepcionista percebendo minha agonia, disse que ele mesmo poderia preencher a autorização e eu só precisaria fazer uma rubrica. Eu não tenho rubrica, disse a ele. Com a caneta tremendo na mão, escrevi meu nome, totalmente ilegível.

A possibilidade de perder meu pai havia transformado meu estado emocional com tanta força que, a sensação que eu tinha, era a de ser friamente capaz de acompanhá-lo em qualquer procedimento, de carregá-lo no colo, de fazer qualquer coisa por ele, mas eu me sentia incapaz de fazer algo simples, que faço todos os dias, como escrever. 

Depois do exame voltamos a SOS Cárdio. Fomos chamados pela médica para uma reunião.

Era uma hora não ansiada.

Já sabíamos a sentença. Hoje em dia, me pergunto se, nessas horas, é realmente vantagem ter conhecimento sobre o que está acontecendo. Infelizmente já sabíamos, eu e meus irmãos e minha mãe, que meu pai, aos 71 anos, se recuperando de uma cirurgia de grande porte, sofrendo uma hemorragia progressiva, absurda, teria que fazer uma nova intervenção cirúrgica, antes que a primeira tivesse completado 24 horas.

E o que é pior, sabíamos que isso poderia ser fatal.

Depois de uma espera torturante de quase três horas, a cirurgia acabou. Papai passou por coma induzido, uma sedação leve e dormiu. A médica nos mandou para casa descansar um pouco.
No outro dia bem cedo, já estávamos todos juntos, mais uma vez, esperando na recepção. Então fomos chamados, um a um para vê-lo. Foi o único dia que esteve no respirador. E falava. Com exceção do momento das anestesias, em nenhum momento ele perdeu a lucidez.

Meu pai é dono de uma fé e vontade de viver inquestionáveis. Tenho certeza que isso foi indispensável para ele sobreviver a tanta provação.


Antes de entrarmos na UTI para vê-lo, todos nós, seus filhos, nos olhávamos rapidamente. Fixar o olhar no outro, era impossível. O pranto subia pela garganta e desaguava. Chorar diante da nossa mãe, não era permitido. Significa fraqueza.

Nós herdamos a força de meu pai e o conhecimento de minha mãe. Somos filhos fortes. Fortes no amor. Demos o melhor que havia em nós. Soubemos tranquilizar nossa mãe, assumimos responsabilidades seríssimas, estivemos juntos todos os dias, estacionamos nossas vidas, nada era mais importante que nosso patriarca.

Crescemos! Crescemos naquelas intermináveis horas de espera e ânsia.

Depois dos 14 dias de internação de meu pai, eu tive a visão mais linda do mundo:

Eu o vi, mais vez, entrar pela porta da sala da nossa casa, vivo e chorando. Eu corri para o meu quarto, me ajoelhei aos pés de um crucifixo que tenho pendurado, sobre os meus diplomas e agradeci a Deus. O pesadelo havia acabado. Meu pai estava em casa. Na segurança do seu lar, no seio da família que ele criou com força, determinação e fé.

Meu pai não bebia. Nunca foi alcoólatra. Jamais. Nem a famosa cervejinha de final de semana ele tomava. O problema foi desencadeado por falta de água. De líquido. Ele não tinha a disciplina de beber dois litros d'água, todos os dias.

Um conselho: Beba água! Muita água! Não pense que beber outros líquidos substituem a água. O organismo precisa de, no mínimo, dois litros de água por dia. Pense nisso.


E há quem idolatre um copo de álcool, um maço de cigarros, um par de peitos, uma bunda e diga que fé é ilusão e que Deus não existe.

Há quem erga um copo de cerveja, como quem ergue uma taça, um santo no ombro, em romaria.

O álcool  é a droga lícita, juntamente com o cigarro, que mais destrói a vida de milhões de pessoas diariamente.

A esses eu digo que bebo para apreciar. Que bebo socialmente e dificilmente.

E para aqueles que não tem fé, eu digo o que diria Zé Ramalho:

"Oh, eu não sei se eram os antigos que diziam. Em seus papiros, Papilon já me dizia que, nas torturas, toda carne se trai. Que normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente o nervo se contrai. Com precisão."

"Nas torturas toda carne se trai" e é a Deus que clamamos. 


A dor instrui.


Setembro de 2010.

quinta-feira, 3 de março de 2011

FAMA


Matéria postada em 5 de julho de 2009. Vale a pena ler novamente.


A exposição nutre a arte




“Ser é ser percebido."
(George Berkeley – 1685-1753)

Não existe a arte sem exposição. A arte sofre uma interação com a interatividade do público, mas perseguir a fama com o único objetivo de ser notado, sem a preocupação com a arte, faz com que o sujeito se torne a imagem do outro e perca sua identidade. Isso é típico do sujeito não artista. Porque o artista busca o reconhecimento, que é muito diferente da notoriedade. Na verdade, o que ele quer é ser ouvido, amado a distância, como o escritor. Para o artista a fama é uma consequência. Quando ela acontece, quando ela vem ao artista -verdadeiro artista- é uma coisa natural do trabalho dele, é parte disso. Perseguir a fama é condenável. Só se pode atribuir valor a fama natural. 



Pertencimento - Pertinescere 

Como acadêmica de Pedagogia  aprendi que é indispensável ao indivíduo que ele se sinta reconhecido pelo o outro. Caso contrário o sujeito não se sente pertencido e se torna um ser solitário, o patinho feio. Mesmo que o sujeito não seja uma figura pública, no seu meio social, no seu habitat natural ele precisa se sentir como parte do meio. Isso é saudável. Faz parte do seu desenvolvimento enquanto ser social. Mas a de se atentar para o motivo desse reconhecimento.

Ser público 

O artista - ser público- tem responsabilidade sobre a arte que divulga? Essa responsabilidade, não vai de encontro com uma característica típica dele que é a questão de ser transgressor, de tentar ir além, não só dos conceitos, artisticamente ditos, mas também comportamentais, políticos, e etc.? Esses choques entre ser público, ter responsabilidade e transgredir, como deveriam ser analisados? Penso que começa pela forma como se lida com transgressão no Brasil, ou seja, não se lida. A Constituição Federal só existe, os direitos se tornaram, excessivamente, sentimentais, não são cumpridos, de igual forma os deveres, sejam eles quais forem. Por que com a responsabilidade sobre o que se divulga seria diferente? Quando todos são transgressores, de quem é a culpa? 

Um exemplo fácil de entender é quando um indivíduo político, afirma ser religioso. Que é do bem, religioso, totalmente, contra o aborto. Afirmações essas que são de responsabilidade pública, porque o político é uma pessoa pública, exposta, tudo o que ele diz e faz é de conhecimento de toda a nação e como tal, tem que agir com responsabilidade social. E depois, quando acreditamos em tudo que ele dizia, em boa parte dos casos, nos damos conta que se tratava, na verdade, de um discurso conservador para ganhar votos. E que não há coerência entre o que ele diz e faz. O que seria legal nele, em ser uma pessoa do bem, religiosa, passa a ser um jargão cínico. Isso acontece muito na vida cotidiana do artista. É muito difícil de reconhecer quem tem a real responsabilidade. Trata-se de um círculo vicioso.

O Show da Realidade 

“A fama é fugaz e a alvorada voraz” (Paulo Ricardo Medeiros) 

Por que essas baixarias na TV, que não são típicas do Brasil, mas que ocorrem em Portugal, no México, nos EUA e etc.? Os realitys shows não vieram pra ficar. Pode a TV mudar algum dia. O que me conforta é saber que a TV, para continuar existindo, o público tem que assisti-la. E que, esse mesmo público, de repente, se cansa desse formato ou a fórmula já não rende mais e em questão de meses, o sujeito, o programa desaparecem. Tudo é efêmero na mídia. Graças! Amém! 

A cena do artista e a vida real

Porque quando a fama deixa de ser a consequência de uma vida incrível, que mereça ser divulgada ao mundo, a favor do Bem maior, como referência e passa a ser a oportunidade, metaforicamente falando, de se vestir no espelho que a mídia estende, ela se aproxima, demasiadamente, da cena, ilusória do artista. A palavra artista perdeu sua importância, já não se sustenta como antes, quando a fama era um valor social. Qualquer um é artista. É possível que essa categoria desapareça. É preciso mudar a cena onde está o artista, porque ela está próxima demais, é acessível demais ao telespectador e o telespectador não é artista, nem sempre está preparado e possui responsabilidade para tal. Neste momento some as mediações e passa existir só a cena, o ato, exageradamente, sem a relação que deveria ter entre telespectador e artista, por meio de uma terceira coisa. Essa coisa seria a fama-saudável, alcançada como resultado de valor social, ou seja, a diferença entre ambos, artista e telespectador. 

Percebida assim a fama tem um lado obsceno (desonesto). Obsceno no sentido dessa aproximação -facilitação- excessiva entre o público e quem deveria estar na cena. Com esses shows de realidade, tipo Big Brother e tal, isso está visível. A rigor se faz o artista ou se fazem anônimos artistas, ou pessoas, ou artistas se fazem ao lado de anônimos notáveis por uma repetição contínua de sua imagem -poluição visual - na televisão. Não por mérito. Nesta situação em que o artista perde sua importância a TV, a máquina, passa a ser, então, o grande artista. Porque o sujeito não quer mais assistir. Ele quer estar dentro da televisão, quer fazer parte dela, porque isso é fácil e proporciona audiência. Ter audiência é igual a ter dinheiro. Ter dinheiro é ter poder de comprar. Comprar o que se assiste. Neste momento ele, o sujeito, se torna, obscenamente, artístico. Não precisa fazer nada. Basta sorrir, basta aparecer. E é nessa obscenidade, por assim dizer, nessa zona de falta de sentido absoluto, onde no fundo, o não sentido - falta de responsabilidade social - ali é regido como valor, que o grotesco aparece. 


Grotesco 

É aquilo que nos remete ao secundário - de menor importância -, ao aberrante - que se desvia das normas. A meu ver, a melhor definição, desse tipo de programa, do ponto de vista grotesco, foi dada por uma participante, no programa a Casa dos Artistas - programa do tipo show de realidade que é transmitido pela emissora de TV SBT - que disse assim: 

"Tudo que nós fazemos é comer, fazer xixi e cocô." 

Essas são as grandes categorias do grotesco, abjeto catológico. É quando a comida, as dejeções, as fezes e todos os valores culturais são associados a isso, as ditas partes baixas. A bunda, a vagina, o pênis, o cocô, e etc. 

Por que isso é tão universal?

Eu penso que estamos atravessando um momento civilizatório universal onde os grandes valores - valor do ser - tendem a se reduzir ao estado zero de significação. Eu vejo um acontecimento universal, não próprio, só do Brasil. As atitudes tendem a se reduzir a zero, do ponto de vista humano. Seja esse humano um americano, brasileiro, africano. Quando as atitudes se reduzem, a "bunda", metaforicamente, aparece, a arte se esgota e o grotesco surge, com essa estética, da tensão, da fronteira entre o humano e o animal. Então perdemos nossas referências e não sabemos mais o que é humano e o que é animal. Porque nós só sabemos o que é humano pela ética, pela responsabilidade, pelo valor, senão nós nos parecemos, demasiadamente, com os animais. Quando deixamos de ler um bom livro e nos sentamos em frente a televisão - doamos nosso precioso tempo de vida - pra assistir a um sujeito fazer cocô, um casal brigar ou uma garota simular um ato sexual em cima de um garoto, nós rompemos a barreira que separa animal e humano. Nós retrocedemos em nosso desenvolvimento ético, educacional e assumimos uma face animal. Tornamo-nos animais. 



(...) “Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres, mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los? Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa. Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.”


(Carlos Drummond de Andrade -"A rosa do povo"- Poema: A flor e a náusea.) 


O que vai acrescentar de conhecimento a minha vida saber onde o Clodovil defecava? Será que, o que a mídia exibe hoje, na televisão é o que o povo quer assistir? Hoje em dia temos revistas, programas de TV e outros, que trabalham, até, com imagens de celebridades em cenas íntimas, em suas camas, praticando sexo, fazendo suas necessidades fisiológicas em seus banheiros e etc. O que há de cultura nisso? Nada. É muito difícil saber o que o público deseja porque, o público não tem chance de se manifestar livremente, as perguntas são feitas a partir de opções, induções, criadas pelo sistema, dentre outros objetivos, para a arregimentação do público em função do mercado. O sujeito não interfere na programação da TV . O público engole o que a televisão o empurra goela a baixo. Ora enganado e ora cúmplice. Afinal, é ele quem decide se liga ou desliga a televisão.


Chupeta 

A mídia eletrônica é ambiência, mas a grande mídia é paisagem. O sujeito entra em um restaurante hoje e vê a TV ligada. Ninguém está prestando total atenção a TV. Ela nem tem som, mas está ligada. O sujeito pode olhar para fora, pela janela do restaurante ou pode olhar para a TV. Trata-se de uma espécie de chupeta. 

Comercial 

O comercial existe para arregimentação do público em função do mercado, mas o comercial já não existe mais só para vender produto. As grandes empresas hoje, que fazem anúncios na TV, são uma espécie de mãe, aquela que passa a mão na cabeça do filho. Aquela que diz: Hoje eu estou com você. Como Cristo disse a Barrabás: “Hoje estarás comigo no paraíso.” Uma coisa assim. Como um pacifier. Isso se vê claramente nos slogans das grandes redes de TV. Slogans pacificadores com frases alienadoras do tipo: “Quem tem Globo tem tudo.” Quer dizer o sujeito não precisa estudar, comer, trabalhar. Assistir a TV já basta. 

Boneca Maçãzinha 

Eu lembro de quando eu era criança e ganhei a boneca Maçãzinha da Coleção Moranguinho da empresa Estrela. Nossa! Eu amava aquela boneca, eu apertava a barriguinha dela e ela soprava um ventinho, pela boca, com cheirinho de mação e eu achava aquilo o máximo. Eu lembro que eu queria a boneca porque, na propaganda da televisão, ela parecia que tinha vida. E depois, com o passar dos dias, quando eu me dei conta, que ela só fazia aquilo, eu senti um vazio terrível, quase uma depressão. Então é nítido que as indústrias dispõem de marqueteiros, que através da televisão, causam esse sentimento ilusório nas pessoas. Olhando por esse prisma, nós começamos a nos cercar de valores, paradigmas, conceitos esquisitos, mentirosos, ilusórios. 

Doutrina 

Em um país onde as crianças passavam - e ainda passam - dez anos de suas vidas assistindo Xuxa, quatro horas por dia, o sistema educacional não poderia ter tido outro futuro, além do caos que está agora. Façamos os cálculos: No Brasil temos mais televisão do que geladeiras e não temos escolas. Ou seja, há um retrocesso, vicioso, gravíssimo na educação, por conta da supervalorização da imagem e desvalorização do ser humano. O ser humano está sendo doutrinado, iludido, através dos meios de comunicação. Não há uma preocupação, por parte das grandes empresas anunciantes, suas respectivas promotoras de eventos e os meios de comunicação, com os danos financeiros, psicológicos, morais, sociais que possam surgir através desse tipo de divulgação. A coisa do grotesco se disfarça em torno desse paradigma de exclusão, de competição. Porque todos esses shows de realidade, por exemplo, se baseiam na exclusão dos competidores, que a princípio parecem ser amigos e depois um tem que eliminar o outro, até que resta um único ganhador. Isso é a cara do que estamos vivendo, agora: Uma corrida – competição - ansiosa, estressante atrás do capital. O dinheiro deixou de ser um recurso e passou a reger a vida das pessoas. Então as pessoas estão exageradamente, ligadas a sua profissão, porque é ela quem proporciona o vício, a droga, ou seja, o capital. Eu, Fabiana, vivo casos em que eu pergunto para as pessoas quem elas são e elas me respondem: "Eu sou vendedora", "eu sou gerente","eu sou médico", "eu sou professor" e etc. O ser humano visto como uma força de trabalho. Como uma profissão. Ele pensa, alienadamente, que ele é a profissão que ele exerce. Ele não se conhece. Está doente. 

A transgressão da classe artística

Penso que a classe artística deixará de existir. Nunca, tal classe, foi tão humilhada - nem na época da Ditadura - como está sendo agora. Vemos nossos artistas tentando, desesperadamente, uma vaga em shows de realidade, lado a lado com anônimos, porque criar música, peças de teatro, cinema, obras literárias, cultura em geral não dá mais audiência, não tem retorno financeiro. E ele se nutre disso, para poder se reafirmar, se abrir, para fazer arte.

Fama: Um espelho que você se reflete e não se encontra 

Existe a fama de palavras e a fama de imagens. Essa fama de imagens tem muito a ver com a frequência e a repetição da imagem, do indivíduo, em determinado espaço. Então há uma pequena diferença entre o famoso e o célebre. Esse valor da imagem por repetição é um valor próprio de celebridade. Essa palavra célebre vem do latim "celeber", que significa "o muito frequentado", quer dizer, indica repetição, quantidade. Então, nos tempos antigos, quando se falava em oráculo grego se dizia "celeber oráculo", ou seja, "oráculo tão consultado." E porque a quantidade, a repetição? Porque nós hoje, praticamente, vivemos em um espelho. Nós somos, gradativamente, moldados, possuímos costumes moldados às formas de sentir, de perceber por uma nova esfera (espaço) que está se acrescentando às esferas tradicionais de vida -esferas da ciência, política, sentimentos - que é a esfera da mídia. A mídia é uma esfera especial onde nós nos movemos - passamos a viver nela-. Ela se acrescenta as outras. Só que é feita de imagem. Feita de um material, digamos, não convencional. Essa imagem lembra um pouco um espelho, mas não um espelho onde as coisas se refletem. Trata-se de um espelho parecido com o espelho da Alice no país das maravilhas. Uma superfície onde nos nós encerramos e vivemos de reflexos-imagens. Portanto é uma esfera imaterial, de repercussões - perda de direção - do que se diz, do que se faz, do que se vê. Quer dizer, nós só existimos quando estamos no espelho. Só existimos quando estamos na imagem, na moda. Portanto, só existimos quando estamos na repercussão, na fama, quando somos celebridades. Então, na verdade, nós não existimos. 

Fama: máscara do sucesso

Fama e sucesso estão constantemente ligados. Mas o sucesso não é necessariamente trazido à fama. Quer dizer, o sucesso significa o resultado exitoso de uma boa ação ou de vida exemplar, de uma atitude qualquer. Trata-se do bom coroamento, por uma ação do sujeito, que tenha rendido bons frutos a uma maioria. Agora, a multiplicação do sucesso pode redundar em fama e de repente, o sujeito não precisa mais praticar a boa ação. Ele já existe na própria imagem de si mesmo, que é a fama. Então não há duvidas que a fama possa substituir a possibilidade de sucesso. O sujeito não precisa mais fazer sucesso. Basta estar na mídia, aparecer. 


A busca pela fama desvirtua a noção de arte e artista 

A noção de arte deve ser desembaraçada. É uma noção carregada de história e responsabilidade. Penso que a fama, a notoriedade, celebridade passam a substituir a intervenção simbólica do real - a realidade é o motivo para arte existir com responsabilidade - da qual, o artista, tradicionalmente tem que ter consciência. Diante do cenário artístico que vemos hoje, já não temos mais parâmetros para poder avaliar que intervenção simbólica é essa do real. Estamos em demasiado ligados, até as entranhas, ao irreal, ao imaginário, à imagem, portanto o real fica em segundo plano. Esse discurso é o discurso da fama. 
"A partir de certo ponto, não se pode mais separar a televisão do seu público." (Autor?) 
Isso significa que televisão e público são as mesmas coisas. Iguais. Eles entram em curto circuito de imagens. Um alimenta o outro. Então, a TV é masturbatória, no sentido ilusório. À medida que o sujeito assiste aos programas, de fácil entendimento, que o divertem, ele vai se tornando cúmplice de tudo àquilo que a televisão lhe dá, seja útil ou não. Não é que a televisão imponha a ele o que deva assistir. Ele vai aceitando e cada vez mais, ele é parte e não vítima. 

Violência: audiência garantida 

Há uma imensa questão entre o que se diz e o que se faz. Nunca, a partir da mídia, da imagem, foi tão gritante, a incoerência entre o que se fala e faz. Nós vivemos nessas esferas. Mas ao lado disso, está a vida real. Neste momento a violência aparece como uma contra linguagem – disfarce -, insuportável que vem das classes subalternas, sem sentido, esperança, e que aparece para disfarçar essa masturbação, essa mentira, que é a televisão. A violência, por seu caráter real, se mostra como uma cala-boca aos que dizem que a TV é ilusória. Então, a violência, é exposta na mídia, nua e crua, por dois motivos: para dar a impressão de que a TV é verdadeira, transparente, porque mostra a violência como ela é e por proporcionar muita audiência. A violência promove audiência por sua natureza feia, estúpida, brutal, contrária aos direitos e a justiça, ou seja, grotesca catológica.

O Mal e a Mídia 

Os bandidos famosos são frutos da mídia. Teoricamente eles teriam que viver anonimamente, mas frequentemente “surgem”, alheios à lei e se tornam mitos sociais. Isso não é novidade. Isso já existia desde as antigas histórias de bandidos famosos com repercussões nacionais e internacionais. A vida bandida do artista marginal é uma inversão de valores, na medida em que contestando o caos estabelecido, no espaço dele, ele tende a se comportar - ou a impor - como “mocinho”, diante dos seus. Eu penso que hoje existe um tipo de jornalismo que alimenta uma pequena fatia da bandidagem. Mas não acredito, efetivamente, que o sujeito vá se tornar marginal, mal feitor para chegar à mídia. Acredito que o sujeito que reside na periferia pode tornar-se marginal por fins estéticos. Estético em que sentido? Histeria social. Onde o marginal é aquele que transporta armas, mas é também aquele que conquista certo significado. O marginal é aquele que não fica na fila do pão. É aquele que, na favela, no meio em que vive sua vida bandida, longe de boas escolas, longe do acesso ao conhecimento, tem certo prestígio social. Quase um mocinho. Trata-se do retrato do menino da favela que quer virar bandido porque cresceu em seu meio social ouvindo que a “firma é forte” – quadrilha bem organizada-, o “bagulho é bom” - droga de boa qualidade por isso vende muito - e o processo judicial é lento. Eu penso que isso é mais forte do que a mídia. Eu não acredito que a questão da droga e do bandidismo seja influenciada pela mídia. Eu creio sim que a lógica da mídia é a mesma da droga. A droga como relação social e a mídia, também, é um tipo de relação social, ou seja, certo tipo de droga. Não acredito que a bandidagem seja piorada em função da mídia. A minha indignação é com o espaço que a mídia possui e que nem sempre o usa para boas ações, desperdiçando importantíssimas oportunidades de promover o desenvolvimento humano, faltando com a responsabilidade social.

Fama e Política 
Imagem, luz, som e pouco conteúdo 

Esses conceitos trazem vazão também na política. Falo dos candidatos políticos que surgem como celebridades, personagens de shows de realidade, verdadeiras estrelas, surgidas, mesmo que, de passados escandalosos, de classes operárias, fabricados por grandes marqueteiros. Agora, voltamos a não-diferença entre a televisão e seu público. Pois, também, não há diferença entre a televisão e o seu não-público. Aqueles que, necessariamente, não assistem TV. A exemplo disto vemos os candidatos políticos, que para se elegerem, precisam do apoio da mídia, precisam estar na mídia, serem expostos, porque a grande massa votante a assiste. Mas existe um modelo político que deve ser seguido por qualquer sujeito que pretende se expor na TV, a fim de ganhar votos. Mas muitos desses políticos, pela ausência, total, de conhecimento que possuem - e ainda assim candidatos a cargos públicos - não estão aptos a encarnarem esses modelos. Surgem, então, os marqueteiros. Profissionais que são verdadeiras fadas-madrinhas, do marketing pessoal. Transformam esses candidatos políticos, quase que num passe de mágica, através de textos, sons, imagens, na pessoa, aparentemente, mais indicada ao cargo a que se predispõe. E tchan, tchan, tchan! O povo acredita e vota nele. Isso é gravíssimo. Mas há também outro lado nessa questão. No Brasil do espetáculo um cargo político pode ser conquistado pelo fator fama ou não. A política partidária está com os dias contados na medida em que some o espaço político. Nesse momento o que resta ao político é juntar-se ao público. Deixar de ser cósmico e ser tornar cosmético. Significa que ele precisa estar maquiado, ser vendido como um produto qualquer porque, na verdade, ele não significa mais nada, do ponto de vista, do poder real (rindo). Então é a fama! Onde o sujeito político passa a ser, também, uma imagem. Ele oscila como um sabonete. De repente uma candidatura pode levá-lo aos céus, bem como, um pequeno deslize, pode levá-lo ao inferno. Porque ele está na mídia o tempo todo. Sua vida é exposta como em um show de realidade. Ele teve que entrar na dança para poder ser assistido, enquanto candidato. E esse foi o seu inferno, inevitável. Em um país onde foi atribuído um valor exacerbado a imagem, o político não tem outra solução, além de se expor exageradamente. E é nessa fronteira entre a exposição necessária -precisa ser visto para ser lembrado, votado - e a vida particular também exposta, que aparecem os podres, onde o político perde a razão, o prestígio, o respeito e, consequentemente, o voto. Pelo menos até o povo esquecer

Instinto de Loba.

Seguidores